Parecia mágica. O que não ocorreu a ninguém é que indestrutibilidade não é um atributo assim tão desejável, se você for pensar bem nas consequências.
Por Denis R. Burgierman
A notícia, dada um século e meio atrás, era tão boa que parecia um sonho realizado: a descoberta de um material quase mágico, infinitamente moldável, indestrutível. Ele foi apresentado ao mundo em 1862, na Grande Exibição Internacional de Londres, com o nome de Parkesine, e faturou uma medalha de bronze no evento. Era celebrado inclusive por amantes da natureza, até porque podia ser misturado a pigmento e usado na fabricação das teclas brancas dos pianos, em substituição a dentes arrancados de elefantes abatidos. O Parkesine foi o primeiro plástico feito pelo homem, a partir da queima da celulose das plantas.
Mas a mágica mesmo aconteceu às margens do século 20, quando se inventou um plástico que não era feito de plantas: era produzido a partir do nada. Quer dizer, não exatamente do nada, mas quase: era feito da queima de gases que evaporavam do petróleo no processo de produzir combustível e que, não fossem recolhidos, escapariam pela chaminé. Com reações químicas, esses gases são liquefeitos numa pasta quente que, quando esfria, endurece, e pode ter a cor e a forma que se desejar. Um material prático e resistente a um custo ínfimo, para uma humanidade que por milênios suou a camisa para obter da natureza algo para construir suas coisas. Quer melhor notícia que essa?
O que não ocorreu a ninguém naquela época é que indestrutibilidade não é um atributo assim tão desejável, se você for pensar bem nas consequências. Será que o sachê de ketchup devia mesmo durar para sempre? A embalagem da bala do Uber, o filtro dentro da bituca do cigarro, até mesmo a purpurina da fantasia, ou as bolinhas esfoliantes misturadas à pasta de dente? Essas coisas todas, que tanta gente descarta sem pensar, vão existir na Terra por milênios.
Eu, você e os outros 7 bilhões de nós cobrimos a Terra de pedacinhos de plástico todos os dias. E aí o planeta coloca para funcionar seu fantástico sistema autolimpante: ele é enxaguado pelas chuvas, que escorrem em rios terra abaixo até chegar aos oceanos, carregando consigo toneladas de eterno plástico.
Outro dia assisti ao recente documentário Blue, por aqui traduzido como “Triste Oceano”, um relato devastador da situação atual da parte azul da Terra. O filme acompanha, entre outros personagens, a rotina da bióloga Jennifer Lavers, que viaja de uma ilha a outra no Pacífico capturando aves marinhas em seus ninhos, enfiando um canudo em suas goelas, e bombeando água até o bichinho vomitar. No líquido regurgitado invariavelmente há dezenas, às vezes centenas de pedacinhos de tampa de caneta bic, buchas de segurar parafuso, tampinhas de garrafa de água e outras indícios da presença humana na Terra.
Trata-se de uma tentativa desesperada de Lavers de salvar a vida de aves que, de outra maneira, morreriam de hemorragia interna e falta de nutrientes. É tudo plástico varrido dos continentes pelos grandes rios que correm nas redondezas das cidades, principalmente as do mundo subdesenvolvido (o rio Amazonas é o sétimo que mais carrega plástico do mundo, numa lista dominada pela China).
Segundo a matéria de capa deste mês da National Geographic, 9 bilhões de toneladas de plástico são atiradas ao mar todos os anos, o equivalente a 15 sacos de supermercado cheinhos de lixo plástico para cada metro da linha costeira do planeta inteirinho. A revista descreve praias paradisíacas no Pacífico onde 15% da areia é feita de grãos de plástico. Encontrou-se um saco de supermercado até mesmo nas profundezas da Fossa das Marianas, no fundo do mundo, 10 quilômetros abaixo da superfície.
Plástico dura eternamente, mas vai se quebrando em pedacinhos cada vez menores pelos ventos, pelas correntes e pelo sol. Esses micropedacinhos estão hoje do lado de dentro de praticamente todos os animais marinhos: até plâncton está comendo plástico. E, como a vida marinha está na base da cadeia alimentar global, estamos todos cada dia mais plastificados por dentro. Vai piorar: a produção mundial de plástico cresce sem parar. Era de 2,3 milhões de toneladas ao ano em 1950, passou a 162 milhões em 1993. Em 2015, produziu-se 448 milhões de toneladas do material mágico.
Quando ouço essa história deparo com a constatação da incompetência do cérebro humano para enxergar o longo prazo e para basear suas decisões de hoje nas consequências futuras. Não é incrível que uma espécie orgulhosa a ponto de se autobatizar “sábia” seja incapaz de prever que, se produzir cada vez mais de algo que dura para sempre, uma hora acabaríamos soterrados nessa coisa? Tanto somos ruins nisso que parece que não aprendemos nunca a lição: está cheio de gente pelo mundo buscando a vida eterna, sem perceber que, se as pessoas durassem mesmo para sempre, tampouco seria uma notícia muito boa para quem tivesse que viver em meio aos dejetos de uma população infinita.
Também acho graça na turma que se assusta com a possibilidade de que a automação de tudo vá acabar com os empregos, porque os robôs farão todas as tarefas e não deixarão trabalho para ninguém. Será que eles não percebem que, neste mundo cada dia mais carente de recursos naturais e entulhado de resíduos, o que não faltará é trabalho para os humanos do futuro, para quem sobrará a responsabilidade de arrumar a bagunça e converter os sistemas produtivos? Certamente precisaremos de muitos robôs para nos ajudar, mas a tarefa é tão imensa que vai exigir a colaboração da humanidade inteira.
Fonte: Nexo Jornal